Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres - TRECHOS DESTE ARTIGO

"A medicalização do parto é um reflexo da medicalização social, descrita como um processo sócio-cultural complexo que transforma em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que antes eram administradas no próprio ambiente familiar ou comunitárioA medicalização transforma culturalmente as populações, com um declínio na capacidade de enfrentamento autônomo das dores e adoecimentos. Esta contribuiu para o declínio da capacidade da mulher em lidar com o fenômeno do parto, sua imprevisibilidade e as dores do trabalho de parto." 

Por MÍRIAM RÊGO DE CASTRO LEÃO - Leão, M.R.C. - Universidade de São Paulo - https://lattes.cnpq.br/1556144117580664 

Co-autores

MARIA LUIZA GONZALEZ RIESCO - Riesco M.L.G. - Universidade de São Paulo - 
CAMILLA ALEXSANDRA SCHNECK - SCHNECK, C.A. - Universidade de São Paulo - 
MARGARETH ANGELO - Angelo, M. - Universidade de São Paulo 
O cuidado prestado à mulher durante a maternidade sofreu modificações significativas, principalmente, a partir da segunda metade do século XX, quando o parto passou a ser um evento hospitalar e cirúrgico. Este processo foi fundamental para o desenvolvimento do saber médico, culminando com o estabelecimento da medicalização do corpo feminino1. 
A medicalização do parto é um reflexo da medicalização social, descrita como um processo sócio-cultural complexo que transforma em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que antes eram administradas no próprio ambiente familiar ou comunitárioA medicalização transforma culturalmente as populações, com um declínio na capacidade de enfrentamento autônomo das dores e adoecimentos. Esta contribuiu para o declínio da capacidade da mulher em lidar com o fenômeno do parto, sua imprevisibilidade e as dores do trabalho de parto. 

Em 2006, 44% dos partos, no Brasil, foram cirúrgicos, sendo essa taxa maior nas regiões Sudeste (52%) e Sul (51%), entre as mulheres com mais de 35 anos (61%), brancas (49%) e com 12 ou mais anos de estudo (83%); no sistema de saúde suplementar foi de 81%3. Em 2008, a taxa chegou a 84,5%4. 
Esse cenário de medicalização do nascimento faz refletir sobre as seguintes questões: As mulheres brasileiras preferem cesariana ou parto normal? O que elas podem fazer para evitar a cesariana desnecessária e indesejada? Como ampliar a autonomia das mulheres que querem partos normais?
 
A CESARIANA E A PREFERÊNCIA DAS MULHERES 

Coortes de nascimentos realizadas em três cidades do Brasil revelaram taxas de cesariana de 50,8% em Ribeirão Preto (1994); 33,7% em São Luiz (1997-1998), e 45,4% em Pelotas (2004). A proporção de prematuridade foi de 12,5%, 12,6% 15,3%, e de baixo peso ao nascer 10,7%, 7,6% e 10%, respectivamente. A maior proporção de baixo peso em Ribeirão Preto, cidade com melhores condições sociais e econômicas que São Luiz, revelou um paradoxo, se considerarmos que o baixo peso deveria ser menos comum entre recém-nascidos de mães de maior nível sócio-econômico5-7. 

Estudo sobre taxas de cesariana em 126 países evidenciou que, apesar da distribuição desigual, 15% dos nascimentos em todo o mundo ocorrem por cesariana....

A taxa ideal de cesarianas deve ter como base a maximização dos melhores resultados maternos e neonatais, considerando os recursos médicos e de saúde disponíveis e as preferências maternas9. Assim, essa taxa irá variar ao longo do tempo e entre as diferentes populações de acordo com as circunstâncias individuais, locais e sociais. 

Essa realidade evidencia que o uso abusivo da cesariana pode causar mais dano que benefício e ilustra o que Illich10 conceitua como contra produtividade. A contra produtividade é descrita como uma ferramenta que passa a produzir efeitos paradoxais, operando contra o objetivo implícito em suas funções como, por exemplo, instituições de saúde que produzem doenças, medicina que produz iatrogenias. No caso em questão, cesariana que produz morbidade e mortalidade materna e neonatal. 

Em relação ao parto, a medicalização influenciou a capacidade da mulher de enfrentamento autônomo da experiência de parir, gerando dependência excessiva, heteronomia e um consumo abusivo e contra produtivo de cesarianas10. 
Revisores da Biblioteca Cochrane registraram que não há ensaios clínicos que comparem os riscos e benefícios da cesariana planejada a termo sem razões médicas, com os riscos e benefícios do parto vaginal planejado, mas apontam para a necessidade urgente de revisões de estudos observacionais e síntese de estudos qualitativos sobre os efeitos a curto e longo prazo da cesariana e do parto vaginal11. 
...
Estudos observacionais realizados sobre preferência da via de parto pelas mulheres, no Brasil, evidenciam que a maioria prefere o parto normal. Um dos principais motivos referidos é a recuperação mais rápida após o parto. Apesar disso, a cesariana é o tipo de parto da maioria das usuárias do setor suplementar de saúde, o que põe em risco a autonomia e a satisfação feminina com a experiência de parir.
 
... Segundo o Ministério da Saúde, a excessiva taxa de cesariana no setor suplementar tem múltiplas razões, dentre elas a relação médico-paciente assimétrica, que dificulta a participação das mulheres na decisão do tipo de parto.
 

A AUTONOMIA DAS MULHERES EM QUESTÃO

 
A Lei nº 8.080, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, considera a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral, como um dos princípios a serem seguidos pelos serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde.
Dentre os princípios da Carta de Direitos dos Usuários de Saúde, de 2006, destaca-se aquele queassegura ao cidadão um atendimento que respeite seus valores e direitos, visando a preservar sua cidadania durante o tratamento. Desse modo, o usuário deve consentir ou recusar de forma livre, voluntária e esclarecida, depois de adequada informação, quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo se isso acarretar risco à saúde pública.

... Assim, considerando que a autonomia é imprescindível no exercício do direito à saúde e que a mulher deve participar ativamente das decisões sobre seu processo de gestação e parto, torna-se imprescindível a implementação de políticas e estratégias de promoção e ampliação da autonomia das mulheres.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 


Evidências epidemiológicas demonstram que o Brasil vive um cenário epidêmico de cesarianas desnecessárias e indesejadas. A ampliação da autonomia da mulher no processo de gestação e parto apresenta-se como uma possibilidade de enfrentamento dessa realidade, marcada pela medicalização e contra produtividade. 
As redes e movimentos sociais destacam-se como possíveis promotores da autonomia das mulheres. O apoio mútuo e o compartilhamento de experiências exitosas de parto parecem contribuir para a construção de relações mais igualitárias entre as mulheres e os profissionais de saúde. A participação nesses movimentos tem possibilitado uma mobilização coletiva das mulheres no sentido de reivindicarem seus direitos na sociedade. 
Investigações científicas são necessárias para identificar e compreender as experiências de parto das mulheres que integram esses movimentos, a fim de revelar como contribuem para o exercício da autonomia nesse processo e para evitar cesarianas indesejadas e desnecessárias. 
 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
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4. Agência Nacional de Saúde Suplementar (Brasil). O modelo de atenção obstétrica no Setor de Saúde Suplementar no Brasil: cenários e perspectivas. Rio de Janeiro: ANS; 2008. 
5. Silva AAM, Bettiol H, Barbieri MA, Brito LGO, Pereira MM, Aragão VMF, Ribeiro VS. Which factors could explain the low birth weight paradox? Rev Saude Publica 2006;40(4):648-655. 
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11. Lavender T, Hofmeyr GJ, Neilson JP, Kingdon C, Gyte GML. Caesarean section for non-medical reasons at term. Cochrane Database of Systematic Reviews. In: The Cochrane Library, Issue 12, Art. No. CD004660. DOI: 0.1002/14651858.CD004660.pub3 
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24. São Paulo. Ministério Público Federal. Ação Cívil Pública em face da Agência Nacional de Saúde Suplementar. [acesso 2012 mar 8]. Disponível em: https://www.partodoprincipio.com.br